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terça-feira, 3 de março de 2009

Galeria da FAV de 2001 a 2006 - Percurso e reflexão I

Célio Braga.

Carla Abreu - Entrevista Carlos Sena

Carlos Sena nasceu na Bahia e reside em Goiânia desde o início dos anos 70. Formado em Licenciatura em Desenho e Plástica pelo Instituto de Artes da UFG, ele se tornou durante os anos 80 um dos pintores mais importantes de Goiás. Sua pintura ficou famosa pela pesquisa figurativa, pela feição melancólica e sensual de suas personagens, pela qualidade técnica de sua fatura. Nos anos 90 Carlos Sena ingressou como professor na FAV (que na época ainda chamava-se Instituto de Artes) e passou a dividir sua atuação de artista com a de professor e pesquisador. Obteve o título de mestre em Arte Publicitária e Produção Simbólica pela ECA/USP, com a dissertação “O artista embalado: uma aventura da embalagem na arte do século XX”. Como artista abandonou a prática da pintura e passou a pesquisar outros suportes, materiais e linguagens, passando pelo objeto, pela instalação e pelas linguagens digitais, desenvolvendo um universo plástico e crítico sobre a produção massificada de imagens. Sua obra foi vista em exposições no Brasil e no exterior e está em importantes coleções públicas como Coleção Gilberto Chateaubriand do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Museu de Arte Contemporânea de Goiás e Casa das Onze Janelas em Belém. Como professor leciona de modo apaixonado as disciplinas História da Arte Moderna e Contemporânea gerando reflexões sobre os caminhos da arte. Suas atuações como curador e pesquisador estão envolvidas em mapear e em criticar a produção contemporânea de Goiás. Sena foi um idealizador da Galeria da FAV; foi seu primeiro coordenador no período de 2002 a 2006 e organizador do projeto Ampliação do Acervo Artístico da FAV. Atualmente ocupa a Direção do Espaço Cultural da PROEC/UFG e prepara o espaço para se tornar num centro de excelência em cultura na Universidade Federal de Goiás.
Decidi realizar essa entrevista com Carlos Sena para colher de sua narrativa fluente e professoral um depoimento sobre a história das exposições de arte na Faculdade de Artes Visuais, para colher um registro sobre as reflexões e as práticas, as escolhas e os processos que definiram o percurso da Galeria da FAV. Nessa entrevista Sena aborda a memória das instituições acadêmicas, o papel da arte na educação, o nascimento da Galeria da FAV, as funções de uma galeria acadêmica, os conceitos e métodos adotados durante a trajetória entre 2001 e 2006, fala sobre seu compromisso com a arte contemporânea e sobre seu projeto de ampliação do acervo.

Galeria da FAV de 2001 a 2006 - Percurso e reflexão II


Divino Sobral. Avizinhamentos, b53 e b54, 2007. Fotografia digital. 74 X 100cm cada.


Entrevista a Carlos Sena por Carla Abreu



Para entendermos melhor a respeito do propósito de criação da Galeria da FAV, o senhor poderia iniciar essa conversa traçando uma trajetória histórica dos espaços de exposição ligados a Faculdade de Artes da UFG?

CS - A galeria desempenha hoje o papel que antes era outorgado à sala expositiva do Museu de Arte Moderna, que foi, um dia, parte integrante do Instituto de Belas Artes de Goiás, o núcleo gerador da atual FAV.
Esse espaço expositivo foi ceifado pela ditadura militar gerando uma lacuna de mais de trinta anos, durante os quais a escola não produziu exposições nas suas dependências ou num espaço agregado a ela.
É necessário dizer que nem mesmo o Instituto de Artes (que era uma composição das escolas de artes plásticas e música) tinha uma sede própria. Foi sediado a princípio num dos blocos da Escola de Engenharia que não tinha instalações adequadas para tal finalidade. No IA ocorriam apenas duas mostras anuais: o Salão Estudantil de Artes da UFG e o Festival de Música e Artes Plásticas da UFG. Eventos que escoavam a produção semestral e que concediam premiações, e que aconteciam em espaços solicitados para tal fim: o foyer do Teatro Goiânia, o mezanino do Museu Zoroastro Artiaga, a sala de entrada da Biblioteca Municipal do Palácio da Cultura; mas também podia ocorrer numa loja revendedora de automóveis. Enfim, não havia espaço expositivo no Instituto.
Somente no final da década de 80 o Instituto de Artes conseguiu construir uma sede própria no Campus Samambaia.
Foi com a mudança para as novas instalações que experimentou ter um espaço expositivo, ainda que completamente inadequado para os novos critérios de montagem vigentes a partir dos anos 90. Nesse período os procedimentos do curador e do designer de montagem adentraram no circuito brasileiro de maneira mais forte e passaram a intervir nas montagens de exposições, e já era muito comum ver nos centros mais avançados espaços preparados com arquitetura, iluminação e sinalização condizentes com a montagem de mostras bem cuidadas.
Esse não era o caso do então espaço de exposições projetado.
Na verdade ele era uma sala bastante tímida, que ficava entre o foyer do auditório e a sala de entrada ao lado da cantina. Era retangular com paredes de vidro, com um pé direito muito baixo, com apenas duas pequenas paredes de alvenaria que ostentavam um grande relógio e uma placa, além dos furos e descascados de pinturas.
As mostras de então eram organizadas amadoramente por um ou outro professor, sempre no intuito de fazer escoar a última produção da sua sala de aula. Não havia curadoria e quase sempre nem mesmo seleção, muito menos ainda expografia. Os trabalhos de desenhos, gravuras e pinturas, uns quase colados nos outros, forravam pequenos e sujos painéis de eucatex, com aquela antiga estrutura de placas únicas horizontais suspensas sobre pés e com altura baixíssima. Enfim, tudo contribuía para diminuir o objeto exposto à condição de quase coisa nenhuma, (entre aspas), tamanho era o destrato e a desimportância que aquilo tinha.


Como se deu o seu contato com essa realidade? O senhor propôs alguma coisa para alterar essa situação?

CS - Assim que entrei na FAV como professor substituto em 1990, me solicitaram para organizar uma exposição para o dia do artista plástico – 08 de maio. Faltavam exatamente quinze dias para essa data, mas, topei na hora. Acionei todos os meus contatos e durante a semana que antecedeu a mostra, eu e um pequeno grupo de novos artistas passávamos horas montando a exposição. Ocupamos todo o prédio, e no dia 08 de maio de 1990, toda a imprensa esteve presente para documentar a mostra. Em matérias de capa os jornais falaram de uma espécie de batismo cultural da nova escola. A notícia da exposição correu como um rastilho de pólvora e o Campus II desceu em peso para ver a mostra. Muita gente de Goiânia se deslocou até ali. Foi grande o volume de visitantes e de escolas que lotavam os corredores o dia inteiro durante os quinze dias da mostra; nessa altura, ficou impossível manter o ritmo normal das aulas, pois o lado de fora das salas estava muito mais atraente...

O que se viu nessa primeira mostra que foi a inaugural da sede do Instituto de Artes da UFG? Depois dela, ocorreram outras mostras dentro dessa linha de proposta?

CS - O que se viu foi, primeiramente, uma enorme sala (o foyer do teatro) para discutir a Antropofagia; uma outra (a galeria) reservada para a obra de um artista incomum, o Moacir de Alto Paraíso; depois, em vários pontos do prédio viam-se instalações de jovens artistas, intervenções nas rampas e esculturas nos jardins do pátio interno. Nos corredores montei galerias com quadros: a primeira com a história do ensino de arte em Goiás trazia desde os pioneiros Ritter, Confaloni, DJ Oliveira, Peclát, passando por todos que vieram depois deles; uma outra galeria estava montada com obras cedidas em empréstimo por galerias profissionais da cidade e exibia desde Siron Franco, Cléber Gouvêa, Omar Souto, até a então recente geração 80; ainda outra galeria mostrava o Clube da Fotografia de Goiânia e foi curada por Rosary Esteves; uma outra mais, exibia a pintura goiana emergente; e por fim, uma última, que exibia um extrato significante da arte produzida naquela escola.
Realizei a segunda mostra com aspectos similares à primeira, e na terceira enfoquei o ensino de arte nas suas diversas instâncias. O processo amadureceu e uma exposição mais profissional tomou corpo em 1995, intitulada “Ato-All”. Foi uma mostra curada coletivamente em parceria com artistas e que exibiu obras de Lygia Pape, Paulo Bruscky, Antônio Dias, Ricardo Basbaum e Shirley Paes Leme.
Embora pudesse parecer que o processo estava consolidado, a sala de exposição do Instituto de Artes, mal engendrada, continuava a mesma e com sua obsoleta programação. Aliás, eu durante bastante tempo também coordenei essa galeria, organizando a pauta somente com as produções de ateliês da escola. Essa experiência me fez acreditar na necessidade de criar uma galeria na escola com caráter mais profissional.
Passaram-se ainda dez anos de tentativas para se conseguir criar um espaço adequado para as exposições. Fato que só aconteceu em 2001, durante o processo de reforma para adequar as instalações das duas faculdades – Artes Visuais e Música –, quando solicitei a mudança da sala de exposições para a marcenaria que seria desativada; o que era um antigo sonho, pois o espaço físico era bem proporcionado e bem localizado, bastante iluminado e bastava leve adequação para se obter um espaço com ótima qualidade expositiva. Com a mudança para esse espaço haveria também a mudança no conceito da sala de exposição.
É importante destacar que a proposta teve o grande apoio do professor Raimundo Martins, cuja administração na Direção da FAV coincide com os anos em que a galeria foi instalada e gerida por mim. Também a Reitora Milca Severino entusiasmou-se com a proposta e nos apoiou. Assim nasceu a Galeria da Faculdade de Artes Visuais.

Galerias em faculdades de artes parecem uma idéia nova. Como se dá a atuação delas no circuito artístico e qual o papel que a Galeria da FAV resolveu desempenhar?

CS - Galerias em (ou de) faculdades de artes não são e nem nunca foram novidade, elas sempre existiram e tem sempre atuado como instrumentos importantes no processo de formação artístico e cultural em que estão empenhadas. No Brasil, todas as grandes escolas possuem ao menos um espaço desses, e às vezes até, alguns deles com diferentes vocações.
Os destinos destas galerias no processo de ensino assumem os mais variados papéis, dependendo da linha educativa e também da política cultural que essas instituições estiverem engajadas. Umas desempenham o papel de somente servirem para dar visibilidade a produção acadêmica local; outras, estão abertas ao intercâmbio cultural com outros centros de ensino; outras ainda, abrem a sua pauta para a “democrática” concorrência pública. Além dessas atuações, há também aquelas galerias que se colocam como um campo aberto às experimentações artísticas.
No caso da Galeria da FAV, durante o período de sua instalação e afirmação, trabalhei com a proposta de ser uma galeria contemporânea aberta às experimentações, uma galeria responsável que determina o papel que desempenha em seu meio cultural, que estabelece curadoria sobre as diretrizes das propostas artísticas que veicula, e que se insere dentro do circuito da produção atual envolvendo profissionais diversos, mostras de qualidade conceitual e expositiva, além de espaço qualificado.

Galeria da FAV de 2001 a 2006 - Percurso e reflexão III


Marcelo Solá.Sem título, 2008. Óleo, aquarela, lápis de cor e monotipia sobre papel. 100 X 120cm.


Entrevista a Carlos Sena por Carla Abreu


O senhor poderia falar um pouco sobre o impacto, a ressonância e o reconhecimento desse trabalho desenvolvido na Galeria da FAV?

CS - A galeria imprimiu um padrão de excelência que influenciou diversas instituições e galerias de Goiânia e do interior de Goiás. O trabalho da galeria tornou-se modelo e referência. A expografia das montagens com o cálculo da posição de cada obra e com a qualidade impecável da pintura das paredes; a identidade gráfica dos seus impressos de esmerado cuidado. A galeria abriu diálogos com a imprensa local e teve todas as suas mostras registradas pelos jornais. Formatou um mailing especializado na área artística, que consta de artistas, críticos, pesquisadores, museus, galerias, espaços culturais, universidades, colecionadores e aficionados em arte, e que permitiu a divulgação e o reconhecimento do trabalho efetuado pela galeria em outros estados. Treinou montadores, monitores, designers gráficos e produtores formando novos profissionais para o circuito local. Abriu-se para um campo de estágios e também de pesquisas que tem alimentado diversas monografias, dissertações, etc, e mesmo trabalhos desvinculados oficialmente da FAV, como é esse seu agora.
Eu esperava pela ressonância devido aos critérios com que cerquei a galeria. E ela veio com força. A galeria recebeu elogios de relevantes nomes da crítica especializada brasileira que a visitou: Agnaldo Farias, Tadeu Chiarelli, Felipe Chaimovich, Daniela Bousso, Cristiana Tejo e Ana Mae Barbosa, dentre outros, nos cumprimentaram pelo nosso desempenho.
Esse trabalho me trouxe convites para debates sobre cultura no Paço das Artes de São Paulo e sobre formação de acervos no IDA/Unb, em Brasília, e também foi comentado de maneira positiva em dois relatórios que diagnosticavam a situação da arte brasileira, elaborados pelo programa Rumos Artes Visuais Itaú.

Como o público e a população goiana se relacionam com a Galeria da FAV?

CS
- O primeiro público da Galeria da FAV é a sua comunidade acadêmica. A galeria nasceu para suprir a carência de um grupo significativo de alunos que se formavam ano após outro, sem nunca terem tido o mínimo contato com exposições profissionais de arte, em galerias ou museus. Também não é pequeno o número de professores que, ainda hoje, não cultivam o hábito de freqüentar exposições de arte.
Acredito que a fruição direta de obras de arte de grandes artistas é uma experiência única e insubstituível. As reflexões que podem advir disso são inúmeras e é difícil calcular o real impacto sobre os indivíduos, principalmente os que estão no processo de formação. O fato é que esse contato mostra-se sempre muito positivo no refinamento de um processo educacional.
A galeria é um espaço acessível para toda a comunidade acadêmica da UFG que se interesse pela atualização da cultura. Algumas unidades participam mais ativamente, como é o caso do pessoal da Comunicação e do Jornalismo, mas de uma maneira geral ela recebe visitas de todos os segmentos, dos diversos cursos, de alunos e professores que vão dos doutorados nas diversas áreas da UFG até crianças do Colégio de Aplicação. Mas também é muito comum receber turmas de escolas da rede pública de Goiânia, além do público aficionado em artes, que enfrentam distâncias para visitarem as mostras da FAV. Esse último segmento do público nunca foi grande, mas é crescente.

Por ser um espaço cultural de uma universidade, a galeria assume outros papéis e funções, entre eles, o de ser um laboratório de experimentações estéticas. Poderia falar um pouco mais sobre essa questão?

CS - Uma galeria de arte instaurada numa faculdade reivindica para si outras funções didáticas e pedagógicas que são diferentes das funções de outras galerias institucionais, ligadas aos museus ou aos espaços culturais de diversas ordens. O que norteia a universidade pública também norteia o desempenho da galeria para o exercício de formação cultural com que está compromissada. Uma galeria aqui é palco para o desempenho dos variados papéis que o ensino, a pesquisa e as diversas ações extensivas possam suscitar.
É um laboratório onde poder ser observados os comportamentos da arte da atualidade, as experiências com o conceito de arte, com as poéticas hodiernas, com as linguagens e as técnicas da arte, com os conceitos de história, crítica e curadoria de arte, etc.
É muito comum na galeria encontrar rodas de alunos informalmente sentados no chão enquanto um professor desenvolve a sua aula, que incorporou aquela situação expositiva como manancial a ser explorado; ver grupos de pessoas discutindo propostas artísticas, técnicas, poéticas, ou ainda pessoas introspectivas em anotações de impressões e reflexões para o exercício de redações, discussões, debates e críticas. Tudo isso é mais comum presenciar aqui, do que num vernissage social de espaços que não são diretamente ligados a educação.
Além disso, as diversas situações engendradas durante a produção de uma exposição de arte, é também um excelente laboratório onde se pode praticar como esse sistema funciona em todos seus meandros, da expografia adequada a cada situação, passando pelo setor de produção da mostra, com peças gráficas, divulgação virtual, divulgação impressa, catalogação e difusão. A galeria articula também com o ensino nas ações educativas com os mediadores/monitores preparados para as diversas solicitações do público.
A galeria é laboratório para diversas pesquisas, redações, artigos, trabalhos de conclusão de curso, monografias, dissertações, teses, etc. A eficácia desse laboratório de estética é visível, sobretudo, na produção artística local, e não estou falando apenas dos trabalhos acadêmicos, mas, sobretudo, da produção dos docentes, que diariamente são instigados a adequar suas práticas de arte às novas situações, e estas, sabemos, são constantemente ampliadas e renovadas.

Poderia nos descrever como foram as exposições realizadas no percurso já traçado pela FAV, citando curadorias, montagens e artistas relevantes que participaram das mesmas?

CS - Durante esse percurso de implantação da Galeria da FAV, busquei adotar um perfil que fosse pluralista e diversificado.
O calendário de exposições priorizou mostras coletivas para enfatizar a grande envergadura da arte contemporânea. Exibiu apenas quatro mostras por ano e que tinham uma duração maior que as do mercado de arte e mais compatível com as do circuito museológico. Haviam intervalos entre as mostras para que os setores de produção e pós-produção pudessem atuar. No percurso em que participei diretamente, coordenando a galeria, foram um total de 25 mostras. A maior parte curada por mim, e umas poucas curadas por profissionais ligados a essa área.
As exposições diziam respeito às questões que são objetos de investigação da arte atual. Geralmente a curadoria parte de uma idéia geral, situada no âmbito do conceito, e que é enriquecida pela pesquisa e pela abordagem crítica até desembocar num conjunto de produções artísticas, capaz de discutir e deslocar essa idéia inicial.
A montagem acurada ajuda a clarear o conceito com mais precisão. Entretanto, dado a natureza individual das pesquisas dos artistas que produziram suas obras distante da abordagem crítica que essa situação expositiva organiza, tais obras devem funcionar como únicas, embora participem daquela discussão. É um trabalho sofisticado que exige muito rigor, pois a hiper-valorização do discurso expositivo pode embotar a obra, e essa é a última coisa que uma curadoria deve fazer, pois a obra deve sempre aparecer em todo seu vigor. A obra transcende a leitura curatorial; embora se acomode nela, suscita sempre outras interpretações e outros níveis de análise crítica.
Quanto aos artistas, a relevância dada pela notoriedade ou pelo reconhecimento público, dignifica e confere credibilidade à exposição. A escolha precisa da obra de cada artista abre caminhos na abordagem curatorial. Como estamos falando de 25 mostras, entre as quais apenas duas foram individuais, fica difícil citar aqui todos os artistas participantes, pois foram mais de 150. Mas tivemos o enorme prazer de exibir obras de artistas brasileiros como Cildo Meireles, Paulo Bruscky, Nelson Leirner, Ricardo Basbaum, Eduardo Frota, José Rufino, Martinho Patrício, Nina Morais, Fabiano Gonper, Gê Orthoff, Lucas Bambozzi, Walton Hoffmann, Eliane Prolik, Tatiana Grinberg, Élder Rocha, Mônica Schoenaker, dos goianos Siron Franco, Marcelo Solá, Edney Antunes, Divino Sobral, Grupo Empreza, e muitos outros com relevância no circuito ou com excelentes produções.
Entre as exposições que eu curei tenho carinho muito grande por “Hodiernos”, “As aparências não enganam”, “Raio X”, a mostra individual do cubano Ruslán Torres. Também as mostras “ABC” (Arte brasiliense contemporânea), “Heterodoxia” e “Transverso” foram marcantes.

Galeria da FAV de 2001 a 2006 - Percurso e reflexão IV


Juliano Moraes. Escada ensimesmada, 2006. Madeira e graxa, 180 X 150 X 40cm.


Entrevista a Carlos Sena por Carla Abreu


De que forma a comunidade acadêmica participou desse processo? Existia algum programa em que suas produções também pudessem ser exibidas?

CS - Sempre acreditei que o paternalismo ou protecionismo à produção acadêmica ao invés de ajudar o aluno a enfrentar os desafios e dificuldades que assomarão no seu caminho profissional, mascaram um sucesso relativo junto ao seu grupo de referência, que em nada contribuirá de fato para o seu amadurecimento artístico. Acredito que o papel da galeria para uma formação responsável, deve, ao contrário das facilitações, criar algumas dificuldades que sirvam como estimulantes desafios para as realizações futuras. Uma galeria universitária que paute a sua agenda apenas na produção acadêmica, pode, por um lado, estimular a produção caseira, mas por outro, impede a transcendência dos limites dessa comunidade acadêmica, formando uma escola que olha para o seu próprio umbigo.
Creio que o contato direto com a boa produção artística, principalmente a dos profissionais desse sistema, é uma experiência enriquecedora em todos os sentidos, e é mais que função de uma instituição formadora de conhecimento, é obrigação dela, propiciar essa experiência.
No entanto, qualquer gestão compromissada com a atuação local deve criar sistemas de inserção dessa comunidade na sua programação, e isso também pautou a minha diretriz. Não apenas a comunidade discente, mas também os docentes participaram de mostras. A inclusão da comunidade discente também era feita de forma rigorosa, mas extremamente respeitadora das conquistas individuais dos alunos, nos diversos desafios que a vida extra-acadêmica dispõe para eles. Desenvolvi dois programas em que os alunos podiam participar e tirar deles experiências profissionais: no primeiro, chamado “Diálogos possíves”, os alunos eram cooptados através de referências dos seus professores sobre a excelência das suas produções, e posteriormente dividiam espaço expositivo com docentes da FAV, possibilitando assim múltiplos diálogos entre duas gerações, destituindo barreiras de reconhecimento público, nivelando-os pelas produções. Outro programa, “Raio X”, traçava um diagnóstico da produção emergente da FAV no circuito profissional, quer seja local ou nacional. Para esse último o aluno, na verdade, tinha que ter emergido de alguma forma, ser selecionado por salões de arte, ou recebido convites para boas mostras; enfim, já ter recebido algum reconhecimento por empreitadas individuais. Assim, por seus próprios méritos, o elenco de convidados organizava-se naturalmente.


Quando surgiu a idéia de iniciar uma política de formação de acervo para a FAV? E como ela evoluiu?

CS - No aniversário da UFG em 1997, organizei uma mostra com as obras que estavam nos gabinetes da FAV. Montei o conjunto na antiga galeria, que naquele momento tinha sido reformada embora permanecesse inadequada. Nessa exposição acrescentei ainda algumas obras solicitadas a alguns jovens professores, numa tentativa de atualização do processo. Escrevi um texto apresentando a exposição como o acervo da FAV, e, apesar da timidez do conjunto, aquilo teve um impacto muito positivo sobre toda a comunidade. Então, começou a ser cada vez mais freqüente se ouvir falar sobre o acervo da FAV.
No processo de fundação da galeria, discuti muito com o Raimundo Martins a necessidade de levar essa idéia de acervo à frente, como um núcleo gerador de um futuro museu. O apoio dele foi fundamental. Então criei o projeto Ampliação do Acervo Artístico da FAV, registrado na PROEC, e já estou trabalhando nele há seis anos.
A partir da pesquisa e da análise das obras dos artistas que considero relevantes à História da Arte em Goiás, escrevi um estudo intitulado “Arte Contemporânea em Goiás – de 1960 até a atualidade” (que aguarda publicação) e essa obra é que me norteia na organização da coleção.
Sobre as aquisições levantadas por meu projeto produzi dois catálogos e alguns folderes; realizei três exposições e algumas palestras.
Recentemente, artistas brasileiros procuraram o projeto para doarem suas obras, e vi nisso a possibilidade de ampliar o diálogo da produção local com a nacional, incorporando estas produções.
Atualmente a coleção por mim organizada contém cerca de cem obras em modalidades as mais diversas, entre pintura, escultura, desenho, gravura, objeto, instalação e vídeo-arte.

Quais foram os critérios definidos e como são constituídos os vínculos para compor o acervo da Galeria da FAV?

CS – O acervo da FAV é eclético e compõe-se de diversas coleções que também tiveram diversas origens: a primeira coleção foi formada por um parco número de obras (pinturas, desenhos, esculturas e gravuras) de antigos professores do Instituto de Artes e de ex-alunos que foram premiados nos Salões de Arte que essa escola promoveu (tenho uma obra incluída nessa coleção pioneira). A segunda coleção veio pronta como doação do Banco Central à FAV, e é formada por gravuras (serigrafias) de artistas do modernismo brasileiro. A terceira coleção foi organizada pela Profª Edna Goya e é composta de obras de gravadores goianos. Finalmente, a quarta coleção, Hodiernos, é fruto da minha pesquisa sobre a arte local e do meu trânsito como artista e produtor cultural nos circuitos local e nacional.
Eu somente posso falar dos critérios estabelecidos dentro do meu projeto de ampliar o acervo artístico da FAV.
Sob o conceito de Hodiernos, organizo uma coleção de arte contemporânea com ênfase na produção goiana, e com alguma amostragem de arte brasileira. A coleção é formada a partir de doações mediadas pela minha pessoa, e o primeiro critério para isso é o reconhecimento público da qualidade da obra do artista e sua historicidade, a importância de sua obra e de seu currículo. Como segundo critério, a relevância da obra doada, que deve estar inserida na trajetória do artista. Depois, enumeram-se a possibilidade da obra ser conservada numa coleção pública, na instável situação brasileira; e mais critérios relacionados às dimensões para o armazenamento e ao estado de conservação.
As doações são legitimadas pelos artistas doadores sob assinaturas de Termos de Doação, documentos legais que eximem a UFG de qualquer ônus sobre essa transação e ainda termos de cessão dos direitos de uso da Imagem da obra para a UFG;
Quanto aos vínculos institucionais, a coleção recebe a chancela de instâncias superiores. As obras doadas são submetidas à aprovação do Conselho Curatorial e Consultivo da Galeria da FAV, e posteriormente também referendadas pelo Conselho Diretor da FAV. Outro vínculo deve ser estabelecido com o processo de tombamento como patrimônio público da UFG.
No mais, os processos de difusão do acervo e a lida diária pela acomodação e conservação da coleção envolvem desde capacitação e qualificação de diversos agentes profissionais, até a adequação e, às vezes, construção dos espaços para que a coleção possa crescer, para que possa permanecer viva para as gerações futuras. É essa minha proposta.

Galeria da FAV de 2001 a 2006 - Percurso e reflexão V


Julio Ghiorzi. Sem título, da série Pinturas Gêmeas, 2005. Díptico: esmalte sintético sobre placa de celulose. 93 X 184cm.


Entrevista a Carlos Sena por Carla Abreu


Quais são as principais dificuldades encontradas para formar e ampliar a coleção?

CS – Creio que, numa visão mais abrangente, considerando o estado atual das coisas, as grandes dificuldades em iniciar coleções para o patrimônio público, pautam-se na desqualificação inicial dos recursos humanos, na falta de aparato material condizente para o armazenamento, conservação e restauração de obras e na inadequação dos espaços arranjados para organizar a coleção.
Responsabilizar-se por uma coleção é um compromisso feito com o futuro, que envolve o convencimento de diversas outras instâncias sobre as necessidades para armazenar, conservar, catalogar, pesquisar e disponibilizar ao público.
É muito mais que um simples exercício de poder de amealhar patrimônio, ou vaidade pessoal centrada na escolha de obras para compor uma coleção institucional. É uma relação subjetiva, embora, eu diria até que, de fato, eu não escolho os artistas, mas, as suas obras e os seus currículos é que os projetam para a coleção. O que faço é uma mediação centrada nas suas produções, busco o que seja extremamente significante para se deixar como legado cultural de nossa época. Eu sempre solicito o que houver de melhor nas produções, e na medida do possível, a resposta tem sido bastante positiva.

A Galeria da FAV é um espaço pequeno, o senhor tem planos para a continuidade deste processo de ampliação do acervo?

CS – Para mim, a galeria deve sempre ter uma postura afinada com o seu tempo histórico, deve participar ativamente na construção de uma identidade contemporânea, ser um núcleo fomentador e difusor da arte atual e ter no presente a sua tônica principal.
Quando nasceu com sua vocação à contemporaneidade a galeria se propunha ser também o núcleo gerador de uma política cultural que visasse, ao seu fim, a criação do Museu de Arte da UFG, unindo o presente ao passado e ao futuro. Na minha concepção o museu não deveria se iniciar pela construção de um belo espaço arquitetônico, mas, ao contrário, pela formação e desenvolvimento de um acervo expressivo, que sujeito às necessidades reivindicaria para si investimentos para sua manutenção, geraria inúmeros problemas que deveriam ser sanados. O acervo requer a construção do Museu.
Outros aspectos importantes para o crescimento do acervo são a qualificação e o aprimoramento dos recursos humanos, e o investimento na reserva técnica, de modo a permitir a solução de problemas que decorrem da formação deste tipo de coleção.

Em que medida a coleção Hodiernos, que o senhor organiza, participa da construção desse momento histórico?

CS – A História da Arte depende da organização de acervos. A produção artística do passado não foi colecionada pela Universidade, e uma grande lacuna existe para ser preenchida por outras frentes de trabalho num futuro bem próximo, eu espero.
A coleção Hodiernos é parte fundamental nesse processo de organização do legado artístico e investe na construção de um patrimônio histórico deflagrado pela condição artística atual. É muito complexo iniciar uma coleção que revele toda a nossa história local, em contato com a produção nacional (o que, a princípio, é a vocação da nossa coleção), se tivermos a preocupação cronológica e acharmos que devemos iniciar esse processo numa perspectiva histórica do tipo: pioneiros, trajetórias e atualização do presente.
A coleção Hodiernos inverte essa ordem. O próprio nome escolhido para a coleção já diz que é atual, de hoje em dia, uma contínua atualização das condições de se fazer arte. É a minha contribuição para o processo geral de organização do acervo memorial que partilho com os artistas do meu tempo.
Mas, por um outro lado, se formamos uma coleção a partir de elementos do presente, acabamos por revelar o desconforto da não organização do patrimônio passado, e essa falha nos instiga a correr atrás da recuperação da história passada, o que é muito mais difícil de ser resolvido porque envolvem espólios familiares, leis de incentivo, doações e aquisições mais complexas.
A inclusão da produção do presente numa coleção pública, no entanto, deve ser cuidadosa e responsável. Não deve visar a princípio o meu gosto e minhas relações pessoais com o meio. Deve sim revelar o melhor da produção artística, a preocupação cultural do meu tempo histórico. E só se consegue organizar uma ação como essa tabulando currículos, investigando trajetórias, mergulhando nas análises críticas dessas produções. Então, cada peça que entrar para a coleção deverá ser significativa na trajetória do artista, deve ter um histórico anexado a ela. Enquanto à instituição cabe se compromissar em guardá-la adequadamente, conservá-la, restaurar se for o caso, para que possa disponibilizar esse patrimônio a exposição pública, além de torná-lo objeto de constantes pesquisas.

Como são as novas obras que passam a integrar a Coleção Hodiernos, e que são apresentadas nessa publicação?

CS – É um conjunto de obras envolvendo pintura, desenho, colagem, fotografia, objeto e instalação. Muitos dos artistas possuíam obras na coleção, mas nessa oportunidade renovaram suas doações. Também foram incorporados alguns artistas bastante relevantes no nosso processo histórico e que ainda não tinham obras na coleção, e numa proporção bem menor foi cooptado o extrato mais emergente da produção atual, artistas que apesar de ainda muito novos, já promoveram atuações relevantes e foram alvos do reconhecimento crítico; então, dado a grandeza dos seus feitos e a excelência das suas produções, atualizam agora, a proposta Hodiernos.
Eu entendo que uma coleção pública de uma instituição do porte da Universidade Federal de Goiás não deve ser objeto de especulação. Ela deve ser comprometida com a própria dimensão da pesquisa e preocupada com o repasse de questões culturais. A qualidade das obras e os percursos individuais dos artistas os indicam às coleções responsáveis pelo arquivamento dessas memórias de época. Ou seja, a instituição apenas reconhece o mérito dos seus feitos.
Nesse sentido, o novo conjunto de peças que passa a integrar a coleção Hodiernos, ampliando-a para cerca de cem obras, é um extrato atualizado e muito significativo da trajetória histórica da arte contemporânea de Goiás.
Siron Franco que está no circuito artístico desde os anos 70 e continua ainda hoje com produção vigorosa, foi agora incluído na coleção Hodiernos. A amostragem se amplia com obras atuais de artistas que surgiram na efervescência dos anos 80, como eu mesmo, Selma Parreira, Ciça Fittipaldi, Elder Rocha, Elyeser Szturm, Edney Antunes, Enauro de Castro, Luís Mauro, Célio Braga, Rosa Berardo, Dulcimira Capisani e Zé César. Sequencialmente as produções atuais da geração que fez a sua incursão artística durante os anos 90, como Marcelo Solá, Divino Sobral, Juliano de Moraes, Pitágoras, Telma Alves, Anahy Jorge, Paulo Veiga Jordão e Rodrigo Godá. Por fim a atualidade através da produção que emergiu a partir do ano 2000, com as obras de Sandro Gomide, Helga Stein e Marcus Freitas. Numa visão ampliada da produção contemporânea de Goiás incorporei obras de artistas que nasceram no Estado, mas que há muito residem ou atuam fora sem romperem os vínculos com Goiânia, como é o caso de Stein, Freitas, Szturm, Rocha e Braga. Hodiernos exibe assim uma visão pluralista e diversificada da arte contemporânea de Goiás.

domingo, 1 de março de 2009

Siron Franco: Goiânia, Rua 57, outubro de 1987


Carlos Sena Passos*

Siron Franco é um artista de obra rica e diversificada, que abarca diferentes categorias como desenho, pintura, objeto, instalação e intervenção em espaços públicos. Sua produção focaliza os diversos conflitos da experiência humana e problematiza as difíceis situações que marcam o nosso tempo: ora discute as implicações da convivência social saturada pela violência e pela bestialidade, ora denuncia as relações de poder viciadas pela crise moral e ética, ora conclama a uma reação diante do colapso do ambiente natural. De vocação crítica e política, é uma obra estofada pela reflexão sobre os traumas e problemas coletivos e visa conversar com o espectador propondo questionamentos capazes de retirá-lo do embrutecimento cotidiano, de alertá-lo sobre os perigos que o cercam e de fazer um chamamento para atitudes compromissadas com a consciência dos valores humanos, da cidadania e da ética.

Em 1987, logo que aconteceu e foi divulgado o acidente radioativo com o césio 137 em Goiânia, Siron Franco produziu uma série de trabalhos que problematizavam as dimensões da catástrofe que se abatera sobre a cidade e principalmente sobre o bairro onde vivera sua juventude. A série composta por pinturas – que foram exibidas na Galeria Montesanti, em São Paulo, ainda na ebulição dos debates que o acidente gerou – e por desenhos – que permaneceram inéditos até a presente publicação nesta Revista da UFG – constrói uma narrativa não linear e pessoal dos sucessivos fatos que marcaram o sinistro acontecimento, formatando um depoimento plástico profundo, e por isto importante, para nós que vivenciamos o acidente e para as gerações futuras que ainda sofrerão suas conseqüências.

Ao olhar, agora, para a “Série Césio” de Siron Franco recompomos todo o impacto que o acidente acarretou sobre a paisagem física e humana de Goiânia, revivemos a experiência de um trauma coletivo pulsante ainda em nossa memória.

A série percorre um trajeto pela paisagem afetada pelo Césio. É simultaneamente lamentação, questionamento, revolta, denúncia, perplexidade, atitude e engajamento, diante da contaminação de um lugar íntimo e público apossado pela eminência do perigo e coberto pela sombra da morte.

Nas pinturas – executadas em técnica mista – existe um sentimento de urgência a impulsionar o gesto que funda as representações, e o espaço da tela é estruturado em função da afirmação da materialidade e da memória dos acontecimentos que marcaram um espaço determinado – Goiânia, Bairro Popular, Rua 57 – em um tempo específico – outubro de 1987.

Sobretudo, é importante considerar nas pinturas o uso que o artista faz da terra como matéria pictórica, abrindo para miríades de significações que parecem reafirmar que é desta terra que fomos feitos todos nós, que ela simboliza para nós a fecundidade e a renovação da vida, e que é sobre ela que nos fixamos no solo pátrio, que fundamos nosso lugar de pertencimento e que demarcamos o território em que nos movemos e agimos, tanto em concepções afetivas quanto políticas. A terra “contaminada” de Goiânia foi empregada em camadas espessas que cobrem partes ou toda a superfície dos suportes, como se esse uso reagisse à negatividade impingida à cidade naquele momento: através destas pinturas a terra de Goiânia retoma uma aura de sagrado, impõem-se com uma força telúrica que emana de todo o planeta, e sedimenta um terreno em que problemas centrais para a contemporaneidade são colocados em questão.

Relacionado ainda ao lugar onde ocorreu o acidente, Siron Franco traça uma cartografia com mapas que demarcam uma espécie de via crucis do Césio 137 em deambulação pela região central de Goiânia. Algumas das pinturas registram a arquitetura presente no Bairro Popular: casas familiares com platibandas simples, alpendres acolhedores, telhados divididos em várias águas e muros frontais de baixa altura; documentam o instante em que o lugar de vida pacata foi abalado por um acidente de alta gravidade, capaz de torná-lo um território sitiado pela maldição de uma estranha luz azul.

Siron Franco acompanhou o percurso do Césio 137, documentou seus estragos, suas vítimas, a desolação, a preocupação e a ansiedade da população goianiense. Uma das pinturas da série trata do lugar último onde foram depositados os rejeitos radioativos do acidente. O depósito “provisório” instalado em Abadia de Goiás, na região metropolitana de Goiânia, é representado pelo artista no interior de uma montanha de terra que recobre grande parte da tela, deixando apenas uma nesga de horizonte aparecer ao fundo, na parte superior da pintura. O Depósito é um cemitério com câmaras subterrâneas; lápides e conteiners assemelham-se; o que se sepulta ali não é apenas material contaminado, mas também um pouco da vitalidade mais primitiva e essencial à humanidade; é um portal que abre para muita indagação sobre a condução desta história sem definição que é o destino dos rejeitos radioativos.

Há outro material extraído da realidade que foi incorporado pelo artista para constituir algumas das pinturas desta série e que também merece consideração. Trata-se de vestimentas, que imersas na materialidade da pintura indiciam a presença dos corpos das vítimas letais imediatas ao acidente. Agregada ao corpo pictórico constituído por planos ora de terra ora de tintas de tonalidades graves ora de cor prata metálico, a roupa tensiona a superfície com seus volumes e rugas peculiares, e atua como um duplo simbólico do corpo ausente que potencializa diante dos nossos olhos a memória dolorida de todos os que faleceram vitimados pelo Césio 137.

A série de desenhos executados a gouache sobre o suporte preto do papel, registra de uma maneira simples e despretensiosa, com gesto enérgico e linha firme, ao modo de esboços realizados na trincheira, personagens e acontecimentos envolvidos no acidente radioativo. O suporte empregado corrobora com o ambiente de luto e isolamento criado na cidade. Uma noite escura encobre o palco onde desenrola graficamente imagens do acidente. A luz fugidia parece encontrar apenas o que foi contaminado. Enigmática a narrativa se desenvolve em quadros que traduzem, sem cronologia, as inúmeras situações: uma folha de ouro fragmentada sobre o papel; o roubo do aparelho de RX da antiga clínica no centro de Goiânia; novamente a cartografia do bairro e de suas imediações; atos cotidianos dos atores do acidente; as primeiras vítimas; os montes de terra retirados das áreas de contaminação; os técnicos da CNEN investigando os níveis de radioatividade; construções geométricas como cadeias complexas que aludem a contaminação espalhada pela cidade; as imagens da sombra da morte que se aproxima rapidamente.

Todo o conjunto desta série de Siron Franco dedicada ao episódio do acidente com o Césio 137, para além de mostrar o pânico instaurado em nosso meio, constitui uma voz coletiva que se materializa através do trabalho do artista, para falar da nossa permanente indignação, da nossa contínua indagação sobre o destino deste lugar, das pessoas e da cidade após o acidente de outubro de 1987.

* Artista plástico, Prof. Ms. da FAV, Diretor do Espaço Cultural PROEC/UFG

Este texto foi originalmente publicado na Revista UFG-Universidade Federal de Goiás, agosto de 2007, Ano IX, nº1.

Yuri Firmeza e o artista japonês de araki



“Eu menti!”, disse Macunaíma com a cara mais deslavada do mundo. Não me lembro agora, afinal já se passaram quase trinta e cinco anos da leitura do livro de Mário de Andrade e, à moda da urgência jornalística, também eu não tenho tempo para verificar na obra se foi por causa do mentido que o anti-herói foi condenado a viver isolado numa ilha deserta, debaixo de um sol sempre a pino, onde a única sombra que existia era sob a única palmeira existente no lugar, e sobre esta, um urubú cagava intermitentemente na sua cabeça.

Mas, lembro-me do Drummond narrando no “Fala Amendoeira”, que quando era um jovem cronista de um jornal de Belo Horizonte, usou esta mesma expressão macunaímica, “Eu menti!”, para justificar uma série de escritos que publicou narrando visita anônima de Greta Garbo, a quem ele foi incumbido de ciceronear na capital de Minas Gerais. Sabia-se na época que ela tinha acabado de deixar o cinema buscando um asilo voluntário, mas na verdade, estava muito doente e bastante esgotada da maratona de sucesso, e fora aconselhada pelos seus médicos americanos a buscar os ares mineiros, como remédio certo para curar sua depressão. Pela graça de ser amigo do adido cultural americano de ”Beagá”, coube a Drummond a difícil tarefa de conduzir a diva nas grandes incursões a Serra do Curral, ou nos lânguidos passeios pelo Parque Moscoso durante tardes mornas.

Foi isso, que o jovem jornalista narrou semana após semana na sua crônica domingueira, enchendo a mineirada de um orgulho ufanista e permitindo, até, que uma leva de causos sobre flagrantes dessa inesperada visita se alastrasse pelas rodas dos incautos socialites, e se constituíssem no repertório temporal de tradicionais famílias mineiras, e também dos poderosos políticos emergentes, e até, dos novidadeiros de plantão. Quando todos tinham uma história para contar sobre encontros casuais com a atriz e seu jovem cicerone, e alguns tinham divulgadas suas participações no restrito séqüito de condutores aos passeios, ou nas fechadíssimas listas de convidados para recepções secretas, o poeta saiu com esta: “Eu menti!”. E assim, Belo Horizonte teve que engolir o orgulho e saber que não estava com aquela bola toda, teve que aprender a rir da sua própria imagem e do folclórico acontecimento que ajudara a criar.

A obra que Yuri Firmeza criou para o Dragão do mar, bem poderia se chamar: “Artista japonês de Araki X Imprensa de Cristal”, pois, apesar do tipo de estratégia usada não ser exatamente uma novidade no campo da arte – inúmeros exemplos poderiam ser citados, desde o antológico engôdo de Orson Welles, passando pelo falso cheque de Marcel Duchamp destinado ao seu dentista, até o vazio de Yves Klein – percebe-se que mudaram-se os tempos, mas a irreverência da juventude artística continua a mesma. O curioso disso, é que o impacto sobre os desavisados também não mudou, e eles continuam chiando pela ética e pela verdade.

No que diz respeito à imprensa jornalística – que vive da reprodução das notícias, quase sempre sem checar às fontes – dá vontade de rir. Mas nesse episódio até que é compreensível a reação dos tapeados, afinal os jornais vivem da espetacularização dos acontecimentos e quase nunca abrem espaço para a crítica ou para o debate cultural. É sempre o fato espetacular ou a novidade da moda que domina toda a divulgação na mídia jornalística. E pouco interessaria nesse caso, se o jornalista tivesse humor suficiente para encarar o dito pelo não dito, pois, o que lhe falta é tempo para pesquisa numa imprensa que é massificada na velocidade imediatista, e que não tem espaço para reflexões mais profundas a respeito da cultura e dos desdobramentos e tensionamentos da arte.

Segundo a crença de uma parte significativa do jornalismo, as complexas atividades da arte contemporânea só interessam mesmo para meia dúzia de intelectuais, e que os jornais são escritos para as massas. Afinal, uma notícia inverídica atinge principalmente o seu público alvo: o povo. Este, segundo as leis das redações, não irá mesmo entender as mazelas da arte, e, portanto, o caminho mais fácil para retratar essa falsa notícia é mesmo a detratação do artista. Em nome da verdade dos fatos, será ele o único malandro julgado, condenado, culpado pela situação.

Mas também, quem mandou o artista revelar para o povo que a imprensa é de cristal, e que um grito mais agudo poderia transformá-la em milhões de caquinhos. Cuidado Yuri! Comenta-se em off que aquela ilha ensolarada fica no litoral nordestino, e nela o fatídico urubú ainda continua pousado sobre a mesma palmeira, espreitando ansiosamente um abusado artista. Advinhe para quê!?

Carlos Sena – Artista plástico, Prof. Ms em Arte Publicitária e Produção Simbólica – ECA/USP, leciona Arte Moderna e Contemporânea na FAV/UFG.

Este texto foi originalmente publicado no livro Sousareta Geitsuka/Yuri Firmeza (organizador) - Fortaleza CE: Expressão Gráfica e Editora, 2007.

Pitágoras



Pitágoras desenvolveu uma trajetória integralmente comprometida com os ideários romântico e expressionista, incidindo no descompasso existencial entre o sujeito e o mundo. É um artista que opera com os códigos desta tradição produzindo trabalhos que denunciam compulsividade, rapidez e precariedade propositais na fatura. Mesmo que seu desempenho técnico tenha se apurado com os quase vinte anos de trabalho, esse depuramento fez-se dentro da rebelião contra o acabamento formal; buscou uma situação de desconforto. Em sua obra o cromatismo é ora carregado, abusa de cores fortes e gritantes, ora é denso e tomado por uma dominante sombria que rebaixa tudo à penumbra. Seu gesto é intenso, forte, carregado de expressividade indomada, em certo sentido é brutal, sem condicionamentos; afirma seu controle sobre o espaço e sua força para gerar um mundo subjetivo de paisagens artificiais povoado por pessoas, insetos, animais, aparelhos domésticos ou retirados de contextos ficcionais. Seus temas e personagens estão inseridos num ambiente trágico sob auspícios de Eros e de Tanatos. Figuras burlescas como máscaras encenam sua solidão, incomunicabilidade, sordidez e mesquinhez, vestindo as roupagens traumáticas da angústia contemporânea. Figuras que caricaturam a vida noturna das metrópoles em ambientes decadentes e mundanos, onde o desejo é despertado, os vícios satisfeitos e o corpo profanado.

Desenhos, pinturas e intervenções sobre reproduções fotográficas fazem parte do leque de técnicas que o artista emprega para constituir sua obra. Não importa qual a técnica ou o se o suporte é tela, papel ou página de revista, o vigor com que Pitágoras constitui seu universo se mantém. Sua investigação do desenho é intensa e obsessiva, nela a redução dos valores cromáticos permite um maior desempenho dos valores gráficos, pois a linha de contorno se fixa com energia e urgência. O desenho é o laboratório onde ensaia todos as questões que leva para a pintura: o repertório de personagens e animais, os ambientes, a escritura primeira e os signos retirados do ambiente rupestre, as imagens vindas de reminiscências dos quadrinhos, o aspecto caricatural, o diálogo – mesmo que inconsciente – com outros artistas. No campo da pintura a cor adquire papel fundamental na criação de um clima de tensões nervosas, no qual os acordes de cores traduzem ambientes da subjetividade. A rapidez e a ação corporal do ato de pintar permanecem visíveis na superfície e se tornam elementos de sua poética. Nas intervenções sobre reproduções fotográficas, Pitágoras utiliza geralmente catálogos de moda para desconstruir um padrão visual e um campo de significação traçado pela publicidade. Nessas intervenções fica patente que muito da obra do artista consiste em desmontar o circulo de ilusões que disfarçam a situação de conflito em que vive a humanidade atual, cercada de valores efêmeros e falsos.

Carlos Sena Passos